Pergunte aos irmãos Luiz Fernando e José Eduardo de Abreu Sodré
Santoro quais foram as grandes decisões que tomaram para desenvolver o
mercado de leilões e construir a organização-símbolo desse segmento no
Brasil e eles dirão que o sucesso se deve mais à consistência do
trabalho cotidiano e aos resultados que proporcionam a vendedores e
compradores do que às ideias inovadoras que tiveram. Mas basta mergulhar
um pouco mais na história para descobrir que tanto a organização quanto
o segmento devem muito à ousadia, ao empreendedorismo, às decisões
acertadas e ao espírito inovador destes fundadores.
1,5 milhão de carros
A Sodré Santoro é a maior organização de leilões da América do Sul.
Atua na venda de automóveis, imóveis e uma infinidade de outros
produtos, como aeronaves, embarcações, máquinas operatrizes, móveis,
computadores e sucata industrial há quase 40 anos. Os números
impressionam. Só de carros, já leiloou mais de 1,5 milhão de unidades – o
equivalente ao que as seis maiores montadoras que atuam no Brasil
produziram no ano passado. Para expor o que vende, possui cinco pátios e
se prepara para lançar o sexto, que totaliza 2 milhões de metros
quadros, área superior à do Parque do Ibirapuera.
Mais que isso, fizeram o próprio sobrenome virar sinônimo do
segmento. Os fundadores e seus filhos, que hoje estão assumindo o
comando da organização, contam que quando apresentam seus documentos em
diversos lugares, é comum ouvirem a pergunta: “Sodré Santoro dos
leilões?”. Um reconhecimento construído com muita dedicação.
Luiz Fernando, à esquerda, e José Eduardo, à direita/FOTO: ALAN TEIXEIRA
Como tudo começou
Foi Luiz Fernando quem iniciou o negócio, em 1979. Tinha menos de 30
anos de idade, três faculdades concluídas (economia, direito e
comunicação social) e trabalhava como operador na Bolsa de Valores de
São Paulo. A função de leiloeiro estava regulamentada no Brasil desde
1932, mas até então tinha pouco destaque, se restringindo basicamente ao
segmento de pregões judiciais. Ele vislumbrou a oportunidade de
estender esse sistema de negociação a outros setores e foi atrás de
informações e da nomeação para atuar como leiloeiro.
Viajou com o irmão José Eduardo para ver de perto como esse negócio
funcionava em outros países, sobretudo nos Estados Unidos. Eles ficaram
especialmente impressionados com os leilões de carros, inclusive como
sucata, mas esse mercado ainda era pequeno no Brasil. O que havia em
volume maior por aqui eram sobras de produção industrial, como retalhos
de aço que as fábricas amontoavam em seus pátios e de tempos em tempos
vendiam sem se preocupar muito com o preço alcançado.
Pátio da Sodré Santoro, em Guarulhos
Vende-se um viaduto
Eles sabiam que, por meio de leilão, conseguiriam preço melhor para a
sucata e foram atrás de clientes. Mas tiveram uma dificuldade
imprevista com empresas privadas. “Naquela época, as pessoas associavam a
palavra leilão à venda de ativos de companhias falidas. A gente chegava
num possível cliente, expunha a ideia e eles diziam: ´Você está louco?
Vão pensar que nós falimos´. Havia um preconceito forte,” conta Luiz
Fernando.
Os primeiros clientes acabaram sendo empresas públicas, que não
tinham esse tipo de preocupação e, além disso, poderiam se beneficiar de
outra vantagem que os pregões abertos proporcionam: a transparência da
negociação, um atributo especialmente importante no caso de estatais.
Um leilão dessa época acabou tendo repercussão muito acima do
esperado. A Dersa, empresa que administra as rodovias paulistas,
contratou a Sodré Santoro para leiloar veículos abandonados após
acidentes ou apreensões nas estradas. “Na reunião, perguntei se não
tinham outros materiais para leiloar, além dos carros, e alguém, não sei
se falando sério ou de brincadeira, lembrou de um viaduto desativado no
km 44 da Via Anchieta construído com treliça metálica. Pensei: ´Por que
não?´. Então colocamos o viaduto no leilão e comunicamos o mercado. O
interesse da imprensa foi enorme. A notícia saiu durante vários dias nos
jornais. No dia do leilão, tinha uma multidão de jornalistas
acompanhando”, recorda Luiz Fernando. “Saiu em todos os canais de TV.”
O lote foi arrematado, mas o negócio acabaria sendo desfeito alguns
dias depois por divergências em relação à forma de demolição do viaduto:
o comprador queria implodi-lo, alternativa proibida pela Dersa. A
estrutura permanece abandonada no mesmo local até hoje.
A sucata de amanhã
Aos poucos, os irmãos chegaram às companhias privadas – e foi então
que eles introduziram uma novidade que trouxe grande resultado para os
clientes e para a própria organização: a venda futura de sobras
industriais.
O sistema foi implantado inicialmente em uma importante indústria de
eletrodomésticos. Assim como outros fabricantes de bens duráveis, a
empresa tinha uma peculiaridade em relação à geração de sucata: o tipo e
o volume das sobras eram relativamente constantes e previsíveis – nessa
indústria, eram principalmente retalhos das chapas de aço cortadas para
a fabricação de fogões, geladeiras e máquinas de lavar.
Luiz Fernando se inspirou nas vendas futuras do mercado de ações e
sugeriu à companhia leiloar não apenas as sobras acumuladas no pátio,
mas tudo o que fosse gerado em períodos futuros. Deu certo. A novidade
se espalhou e vieram muitos outros clientes. “As empresas desativavam
seus pátios de sucata, que eram feios, e ainda recebiam antecipadamente
pelas sobras que iriam gerar”, ele recorda. “Sem contar que, na época, o
Brasil vivia um período de inflação altíssima e o recebimento era
antecipado.” Segundo ele, por volta de 1985, seis anos após a fundação, a
Sodré Santoro já atendia cerca de 50% das indústrias do Estado.
Do alto da Kombi
Paralelamente à consolidação desse mercado, iam buscando outros
segmentos, como os leilões judiciais e a venda de veículos de
seguradoras recuperados de furto ou acidentados e bens que os bancos retomavam de financiamentos não pagos – principalmente imóveis e
automóveis.
Naquele tempo, o palco sobre o qual Luiz Fernando e José Eduardo
comandavam boa parte dos leilões era uma perua Kombi que funcionava como
carro de som. Eles ficavam com parte do corpo para fora do teto solar
do veículo e, com o microfone na mão, apresentavam os lotes e
estimulavam os compradores a dar seus lances.
Em pátios com muitos carros ou outros produtos expostos, a Kombi ia
mudando de lugar para ficar mais perto dos novos lotes a serem vendidos e
dos interessados em comprá-los. Finalizavam cada negociação com a
tradicional batida do martelo, que para eles simboliza mais do que a
conclusão de uma venda. Representa a paixão pelo negócio.
Sodré
Santoro, Km 224,06 da Rodovia Dutra, Guarulhos. Na foto, pátio com
motocicletas que foram leiloadas/ FOTO: VALERIA GONCALVEZ/AE
Vem recessão por aí
Em 1989, eles enxergaram uma ameaça e uma oportunidade no horizonte. A
inflação estava completamente fora de controle, tendo atingido
inacreditáveis 1.764% naquele ano, e o candidato Fernando Collor ganhara
as eleições com a promessa de acabar com ela rapidamente. “Pensamos:
´vem recessão forte por aí´”, conta Luiz Fernando. “A produção
industrial vai cair, o mercado de sucata vai encolher e precisamos nos
preparar para a mudança.”
Em compensação, eles previram grande aumento na devolução aos bancos
de imóveis e, principalmente, carros financiados – e direcionaram o foco
para esses negócios. Isso exigia uma mudança importante. Até então, os
leilões que a organização realizava aconteciam quase sempre na sede das
empresas vendedoras. Para crescer no mercado de carros, porém,
precisavam investir em pátios próprios – e foi o que fizeram.
Em 16 de março de 1990, um dia após assumir o governo, Collor anunciou um plano econômico arrasador. Para reduzir drasticamente o
consumo, confiscou todo o dinheiro que a população tinha depositado no
banco acima de 50 mil cruzeiros – o equivalente hoje a R$ 9,7 mil. Esses
valores só começariam a ser devolvidos dali a 18 meses e mesmo assim
aos poucos.
Leilão a prazo
A recessão se aprofundou e logo as retomadas de carros financiados se
multiplicaram. Mas como vendê-los num momento em que ninguém tinha
dinheiro disponível nem mesmo para eventuais pechinchas? Luiz Fernando
levou uma ideia nova aos bancos: vender os carros a prazo, algo inédito
naquela época e que até hoje é extremamente incomum no segmento de
leilões, que se caracteriza pelas negociações à vista.
Exatos trinta dias após o Plano Collor, a Sodré Santoro anunciou o
primeiro leilão de carros pós-confisco com compras parceladas em dez
prestações. “A procura foi fantástica”, relata Luiz Fernando. “Tínhamos
150 carros à venda e apareceram 4 mil interessados.” Nos dias e meses
seguintes, as vendas a prazo continuaram gerando ótimos resultados.
Nos anos seguintes, a organização deu prosseguimento à estratégia de
investir em pátios próprios para armazenar e expor as mercadorias dos
clientes. Em 1996, inaugurou o de Guarulhos, na Grande São Paulo, que
figura desde então como o maior da América do Sul, com 300 mil metros
quadrados. Além dele, possui unidades em Ribeirão Preto, Bauru, Monte
Mor, no interior paulista, e Curitiba. Em 2018, está prevista a
inauguração do pátio de Cesário Lange, com mais de 1 milhão de metros
quadrados.
Contratos de aluguel à venda
A história da Sodré Santoro traz muitos outros exemplos de inovação.
Ainda nos anos 90, um banco que havia tido sua liquidação decretada
chamou os leiloeiros para vender seus imóveis. Na conversa, o cliente
contou que tinha um problema urgente: devolver os prédios de agências
alugados, situados em alguns dos melhores endereços do País, aos
proprietários, pagando multa. “Eram contratos com muitos anos de
vigência pela frente e que podiam ser transferidos a outros locatários.
Então, sugerimos, em vez de devolver, vender os direitos de locação em
leilão”, conta Luiz Fernando. “Deu certo. Em vez de gastar com rescisão,
eles ganharam um bom dinheiro com aqueles contratos.”
A partir dos anos 2000, começaram a enfrentar um novo desafio: a
adaptação do negócio à era da internet. Quem visita o site da Sodré
Santoro percebe que os negócios já estão incorporados à era digital. Com
as mesmas ferramentas dos maiores portais de leilões do mundo, a
organização apresenta milhares de ofertas online, gerando negócios com
agilidade e transparência.
Mas Luiz Fernando reconhece que, nesse aspecto, a organização deve
mais aos sucessores do que a ele e ao irmão. “No começo, eu e o José
Eduardo éramos um pouquinho contrários a investir em internet”, ele
afirma. “A gente pensava que teria um público restrito, mas a rede
acabou se mostrando uma excelente ferramenta para ampliar o número de
compradores, que agora podem estar no Brasil inteiro”.
Os leilões continuam acontecendo presencialmente, mas são
transmitidos em vídeo e recebem lances pela internet. Os compradores
virtuais arrematam 87% dos lotes, muitos deles depois de visitar
pessoalmente os pátios da Sodré Santoro para avaliar previamente os
produtos.
Atiçando rivalidades
Os fundadores ainda conduzem alguns leilões. E fazem isso por paixão.
“Eu gosto de participar das negociações, de acirrar as disputas”, diz
Luiz Fernando. “De olhar nos olhos de um dos interessados e dizer: ´Ele
cobriu o seu lance, você vai deixar por isso mesmo?´ De estimular a
rivalidade.”
Um dos leilões mais importantes que realizou na última década foi a
venda do famoso prédio do antigo Hotel Nacional, um cartão postal do Rio
de Janeiro projetado por Oscar Niemayer em 1970, que havia falido e
estava abandonado havia 14 anos. Depois que Luiz Fernando bateu o
martelo, em 2009, o prédio passou por uma reforma completa e o hotel foi
reinaugurado no fim do ano passado.
Mas os fundadores se ocupam hoje mais das decisões estratégicas da
organização. O dia a dia está a cargo de três filhos de Luiz Fernando
(Carolina, Mariana e Otavio) e do filho de José Eduardo (Flávio), que
herdaram dos pais a paixão pelo negócio e cuidam de áreas distintas da
Sodré Santoro.
Sonhos para o futuro
Os fundadores têm muitos planos para a Sodré Santoro. Acreditam que
ainda há diversos segmentos novos a serem desbravados, mas mantêm os pés
no chão. “Você vê tantos exemplos de empresas que eram poderosas no
passado, mas não conseguiram se adaptar às mudanças do mercado e
desapareceram, então a primeira pergunta que a gente se faz é como fazer
o melhor para o negócio de leilões continue prosperando”, diz Luiz
Fernando. “Leiloeiro é uma das profissões mais antigas do mundo,
acredito que sempre vai existir. Mas a gente não pode ficar contente só
com o que passou porque senão fica para trás. Tem de ficar atento às
transformações no mundo, às novas oportunidades, e evoluir
continuamente.”
Essa filosofia tem sido seguida pelos sucessores, que vêm estudando
novas formas de aproveitar o potencial da internet para ampliar o leque
de leilões da Sodré Santoro. Pelo menos um projeto inovador deve ser
implantado em 2018, provavelmente ainda no primeiro semestre. Luiz
Fernando e José Eduardo não revelam detalhes sobre o novo investimento.
Mas uma coisa é certa: eles já bateram o martelo.
Fonte: Estadão